domingo, 9 de abril de 2023

O futuro muito perto de casa

Giovana Girardi
giovana.girardi@apublica.org
Chefe da Cobertura Socioambiental
O ano é 2037. A temperatura média global já subiu 1,55ºC na comparação com o período pré-industrial. Florestas estão pegando fogo por todo o planeta. Países no Oriente Médio sofrem com uma escassez severa de água. Dezenas de espécies já se extinguiram. No meio de um cenário de caos, líderes mundiais se reúnem em mais uma Conferência do Clima da ONU – a 42ª – e discutem se dá para deixar a Terra aquecer só mais um pouquinho. “Quem sabe 2,2ºC, 2,3ºC? Vai ficar tudo bem.” Essas são as cenas iniciais de uma nova série da Apple TV, Extrapolações, que projeta como podem ser as próximas décadas da humanidade diante do aquecimento global e das mudanças climáticas. É ficção – algumas partes soam até bastante improváveis –, mas os elementos de fundo, como o aumento de temperatura, do nível do mar e da ocorrência de eventos extremos, são bem baseados em conhecimento científico. Em projeções sobre como o clima pode se comportar de acordo com a quantidade de gases de efeito estufa que continuarmos jogando na atmosfera. Comecei a ver esse episódio meio sem dar muita atenção. Era um sábado à noite, há quase três semanas. A série tinha acabado de estrear e eu não tinha lido nada sobre ela. Só vi que tinha bons atores e era sobre mudanças climáticas – tema que está no meu radar há mais tempo do que eu gosto de admitir –, então resolvi dar uma olhada. Bastou cinco minutos para que a história disparasse todos os gatilhos no meu peito. 1,55ºC de aquecimento. Daqui a 14 anos. 14 anos é tipo amanhã, né? Dois dias depois seria divulgado o último relatório da série mais recente de documentos do IPCC, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, e já sabia que uma das mensagens que ele traria era justamente reforçar o senso de urgência para ações de contenção do problema. Ou agimos agora ou será impossível garantir um futuro habitável para todos. O planeta aqueceu em média 1,1ºC desde a Revolução Industrial e já estamos experimentando consequências disso, como ondas de calor mais frequentes e eventos extremos mais intensos. O IPCC estima que de fato chegaremos a 1,5ºC por volta de 2030 – mantido o ritmo atual de emissões de gases de efeito estufa. Esse é o máximo de aquecimento que deveríamos nos dispor a aceitar. É o limite que foi estabelecido pelo Acordo de Paris, compromisso assumido por quase todos os países do mundo em 2015. O mesmo IPCC calculou as diferenças que podem ter um planeta 1,5ºC ou 2ºC mais quente e concluiu que cada meio grau a mais pode ser catastrófico. E que, sim, o mais prudente, e seguro, é não deixar chegar lá. “ Isso tudo está muito bem estabelecido pela ciência. Só não admite quem está ganhando em manter o business as usual – ou é negacionista influenciado pela turma que ganha com isso. De todo modo, meu ponto é: sabemos! O que me balançou ao assistir à série, porém, foi realmente VER como esse mundo pode ser. Me dar conta do quão próximo estamos dessa nova realidade. E como podemos ser afetados individualmente. O segundo episódio, já em 2046, trata, por exemplo, dos riscos do calor extremo à saúde ao mostrar uma criança colapsando num dia de extremo calor, quando a recomendação era não passar mais do que 15 minutos ao ar livre. Na hora me veio à mente conversas que já tive com o climatologista Carlos Nobre, um dos maiores especialistas brasileiros no tema. Ele sempre frisa como o trabalho a céu aberto poderá ficar impraticável em dias que combinem onda de calor com umidade alta. A vida vai depender de ficarmos em locais frescos, com ar condicionado. É meio normal pensar no aquecimento global como a ocorrência de grandes eventos extremos. Mas a real é que vai afetar nosso dia a dia. Coisas corriqueiras podem ficar insuportáveis. Uma simples caminhada, do local de trabalho a um restaurante na hora do almoço, por exemplo, num dia quente demais, pode virar um drama. Uma das maiores dificuldades que cientistas, ambientalistas, jornalistas de ciência e ambiente enfrentam ao comunicar as mudanças climáticas é que, em geral, nossos interlocutores, quando acreditam no que estamos falando, tendem a achar que se trata de um problema futuro, distante. Talvez isso esteja mudando aos poucos – cada vez que temos um novo registro da chuva, ou seca, mais intensa da história, logo depois de termos batido esse mesmo recorde, por exemplo. Mas ainda é difícil tocar corações com esse tema. Essa provavelmente será a única vez que vou me valer de uma ficção aqui nesta newsletter. Acho que a realidade já é bem ilustrativa. Mas meu esforço nessa nossa conversa semanal será justamente tentar fazer essas traduções e conexões: da ciência com o dia-a-dia e, principalmente, das decisões políticas e econômicas com os impactos ambientais e climáticos que já estamos sentindo.
* Dei a sorte de bem nesta quinta (6) contar com a publicação de um estudo científico que traz uma dessas conexões: O trabalho, divulgado hoje na revista Communications, Earth & Environment, quantifica os benefícios da preservação do meio ambiente na saúde e economia. O estudo sugere que florestas preservadas por terras indígenas na Amazônia são capazes de evitar cerca de 15 milhões de casos de doenças respiratórias e cardiovasculares por ano ao conseguirem filtrar poluentes emitidos em queimadas em outras partes da região. A pesquisa conduzida por cientistas no Brasil, nos Estados Unidos e no México avaliou o impacto do fogo sobre a saúde das populações amazônidas e como florestas bem preservadas conseguem evitar que os danos sejam piores. Liderado por Paula Prist, cientista pesquisadora sênior da EcoHealth Alliance, o trabalho aponta que cada hectare de floresta queimada custa às cidades pelo menos US$ 2 milhões de dólares no tratamento de doenças relacionadas ao fogo. Os impactos podem ser sentidos até 500 km de distância de onde ocorreu o fogo. Por outro lado, os pesquisadores observaram que, no período do estudo, entre 2010 e 2019, houve um número menor de infecções nas áreas mais florestadas. Eles calcularam que a floresta Amazônica como um todo tem potencial de absorver 26 mil toneladas de poluentes – especialmente do danoso material particulado pequeno (MP 2,5) – todos os anos. Os territórios indígenas respondem por 27% dessa absorção, embora ocupem apenas 22% da floresta. Essa diferença se deve, acredita Prist, ao fato de as florestas nas TIs serem, em geral, os locais que menos sofreram desmatamento na Amazônia. Ou seja, se não fossem as terras indígenas, poderiam ocorrer 15 milhões de casos a mais de doenças respiratórias e cardiovasculares por ano – um custo para o sistema público de saúde de US$ 2 bilhões, estima a equipe. Argumento a mais para a proteção das TIs que já existem e a demarcação das que estão em processo – como as 13 que foram prometidas pelo governo Lula. “Conservar esses territórios é questão de saúde pública”, afirma Prist. É um argumento a mais também para que todo o desmatamento na Amazônia seja contido. A perda da vegetação fragiliza a capacidade da floresta remanescente de desempenhar suas funções. Ao mesmo tempo em que colabora para uma piora do aquecimento global – o desmatamento da Amazônia é a principal colaboração do Brasil ao problema. As mudanças climáticas, por sua vez, desempenham um efeito cascata, tornando o clima mais seco, o que favorece incêndios florestais provocados pelo homem e a degradação florestal. É um ciclo que pode ser interrompido lá no começo, com a proteção dessas áreas. E o benefício será sentido diretamente na ponta do nariz.

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