“Eu não vou morrer como assassina de índios, de indígenas; eu não vou morrer como genocida. Eu quero a oportunidade de mostrar o trabalho que eu fiz por 30 anos e o trabalho que eu ainda quero muito fazer com os povos.” Essa é a senadora Damares Alves (Republicanos-DF), que não é integrante mas aparece nas sessões, segundo ela, como “assessora” da comissão temporária externa criada pelo Senado em fevereiro sobre o genocídio Yanomami. Uma das mais fiéis ministras de Jair Bolsonaro, responsável pelo tema dos direitos humanos no antigo governo, agora vai à comissão para tentar reescrever sua biografia assombrada pelo fantasma das 570 crianças Yanomami mortas por causas evitáveis durante o seu governo, como desnutrição, malária e diarreia. A sua consciência vai responder. A fala de Damares ocorreu depois que o presidente da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) nomeado já no governo Lula, o indígena tapeba Ricardo Weibe, informou o seguinte, em alto e bom som: “E eu queria reforçar aqui, na minha leitura, como uma pessoa que esteve lá, que, de fato, era um projeto de genocídio que estava em curso”. “A comissão idealizada e montada por três parlamentares de direita e pró-garimpo de Roraima é pura desinformação a partir da sua própria missão, que fala em “acompanhar a situação”, não o genocídio ou a tragédia humanitária, dos Yanomami, e a “saída”, não a operação de desintrusão forçada dos garimpeiros clandestinos e ilegais que devastaram a Terra Indígena Yanomami durante todo o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022).Tudo que se relaciona ao governo Bolsonaro é suavizado e deixado em segundo plano pelo comando da comissão. De todos os 38 ofícios até agora enviados, apenas um se dirigia a um ex-integrante do governo Bolsonaro, o ex-presidente da Funai e delegado de polícia Marcelo Xavier – que, aliás, recusou o convite e não compareceu à comissão. Por outro lado, chovem requerimentos para ouvir ou cobrar informações dos atuais membros do governo Lula. Em vez de Xavier, a comissão intimou a atual presidente da Funai, Joênia Wapichana, que compareceu e deu um longo depoimento. Em vez de cobrar explicações do ex-presidente do Ibama, Eduardo Bim, a comissão convidou o atual, Ricardo Agostinho, que assumiu o cargo há menos de dois meses. A comissão nem cogitou convidar o ex-ministro do Meio Ambiente, o bolsonarista e negacionista da destruição ambiental da Amazônia Ricardo Salles, ou o ex-ministro do GSI (Gabinete de Segurança Institucional) e militar Augusto Heleno, responsável por coordenar uma “Sala de Situação” dentro do Palácio do Planalto. Tal sala foi criada após determinação do STF exatamente com o objetivo de monitorar e agir contra ameaças a sete terras indígenas no país, incluindo a Yanomami. A comissão foi instalada no Senado sob o protesto das principais organizações indígenas e indigenistas de Roraima, como a HAY (Hutukara Associação Yanomami) e o CIR (Conselho Indígena de Roraima). Os indígenas nunca aceitaram que os senadores Chico Rodrigues (PSB), presidente, “Dr. Hiran” (PP), relator, e Mecias de Jesus (Republicanos) sejam interlocutores legítimos de qualquer coisa relacionada aos seus direitos ou à Terra Yanomami. Essa evidência não impediu que o senador Marcos Pontes (PL-SP), outro ex-ministro do governo Bolsonaro, fosse ao microfone numa das reuniões para declarar o seguinte: “Qual é a visão especificamente dos Yanomami para o futuro deles daqui a 20 anos, daqui a 30 anos? Como eles querem estar? Esse é um ponto importante para a gente levar em conta aqui. [...] E como isso é levado em conta, obviamente pela Funai e pelos órgãos, para que sejam tomadas as providências de acordo com isso?” O senador também disse que era importante cobrar “uma ação do governo”, citando os ministérios da Fazenda e do Planejamento, “rapidamente”, “porque é urgente”, no sentido de obter recursos financeiros para socorrer os Yanomami. Há pelo menos quatro anos os Yanomami manifestam publicamente toda sua contrariedade com a invasão garimpeira em suas terras, tanto em assembleias indígenas quanto em dezenas de notas, denúncias e reportagens de imprensa ao longo de todo o governo do próprio militar reformado Marcos Pontes. Denúncias que foram parar na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, por exemplo. Não se sabe de qualquer ação do então ministro da Ciência e Tecnologia de Bolsonaro em defesa dos Yanomami que agora ele faz questão de ouvir. Nenhuma palavra conhecida de Pontes para cobrar seu então colega, Paulo Guedes, ministro da Economia. Em oito reuniões realizadas até aqui, a comissão também se tornou uma difusora de desinformação, distorção e fake news. Usando uma suposta autoridade moral por residir em Roraima “por 41 anos”, o senador “Dr. Hiran” respondeu a uma colega, Zenaide Maia (PSD-RN), que “nós temos lá, Zenaide, atividade garimpeira naquela área há mais de 80 anos”. O senador nesse ponto omitiu a explosão do garimpo na terra Yanomami durante o governo Bolsonaro fartamente detectada por imagens de satélite e confirmada por especialistas em geoprocessamento. Não só na terra Yanomami, mas em várias partes da Amazônia o discurso bolsonarista pró-garimpo gerou uma reação em cadeia, com inúmeros graves desdobramentos, documentados por exemplo no especial “Amazônia Sem Lei”, da Agência Pública. Na terra Yanomami, o garimpo viveu duas grandes explosões, no final dos anos 80 e agora no governo Bolsonaro. Repetir que ele “sempre existiu” é uma estratégia de tentar diminuir a responsabilidade do último governo. Hiran disse ainda que é “contra” o garimpo ilegal na terra Yanomami, mas ao mesmo tempo afirmou – sem apresentar qualquer evidência – que “temos ali a maior reserva do mundo de urânio”. Em fevereiro, a Agência Pública esteve na sede da ANM (Agência Nacional de Mineração) de Boa Vista (RR), onde foi repetido o óbvio: não existe qualquer estudo oficial sobre quantidade ou qualidade de minérios na terra indígena Yanomami porque a exploração mineral da área é vedada pelas leis em vigor. Logo, qualquer informação sobre tamanho de minas é uma especulação. “Nós temos que discutir isso sim [mineração]”, disse Hiran numa das reuniões. Segundo ele, o assunto “é muito complexo, é muito complexo”. Complexo era a palavra predileta do ex-vice-presidente Hamilton Mourão (PL-RS) quando cobrado sobre a necessidade de retirar os garimpeiros da terra Yanomami. Passados pouco mais de dois meses do início da operação de desintrusão, o governo federal não conseguiu extirpar todos os garimpos na terra Yanomami, porém obteve nítidos avanços, como a queda de 88% nos alertas de garimpo na região do rio Uraricoera. É preciso ir além. Mas as ações do governo, principalmente do Ibama, da Funai, da Polícia Federal, da Força Nacional e, mais recentemente, da Polícia Rodoviária Federal, demonstram que empenho, recursos e boa vontade podem levar à expulsão completa do garimpo dentro do território - desde que as Forças Armadas realizem, de fato, o controle do espaço aéreo, o que servidores do Ibama e da Funai alertam que não está ocorrendo. O fim do garimpo permitirá a recuperação dos rios e da floresta, ajudará a erradicar a malária e facilitará o trabalho dos agentes de saúde em áreas hoje ainda controladas pelo garimpo. Dá para fazer e já foi feito no início dos anos 90, como cansa de repetir o sertanista e ex-presidente da Funai Sydney Possuelo. “Complexo” se tornou em Brasília, especialmente ao longo do governo Bolsonaro, apenas uma palavra para não querer fazer. Errata: na última newsletter, escrevi erroneamente, pelo que peço desculpas, duas datas como o dia da “megarrebelião” do PCC no país, dezembro e fevereiro de 2001. A data correta é a segunda menção, 18 de fevereiro de 2001.
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