Por Nathallia Fonseca - Helena Paro é um nome conhecido quando o assunto é justiça reprodutiva. Ginecologista, obstetra, pesquisadora e professora da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), em Minas Gerais, ela criou o primeiro serviço de aborto legal por telemedicina do país. O atendimento pioneiro auxilia o abortamento legal de mulheres e meninas vítimas de violência sexual. Os procedimentos por telemedicina foram regulamentados no Brasil por resolução do Conselho Federal de Medicina. Desde que lançou a cartilha “Aborto legal via telessaúde”, em 2021, nos momentos mais dramáticos da pandemia de Covid-19, quando os atendimentos de aborto legal ficaram travados nas unidades de saúde, Paro tem sofrido retaliações. São desde ataques virtuais a ações coordenadas por políticos e por órgãos como o Ministério Público, a Defensoria Pública e o Ministério da Saúde. A médica também é alvo de um procedimento ético-profissional movido pelo Conselho Regional de Medicina (CRM) de Minas Gerais, que, em caso extremo, pode levar à perda de sua licença médica. O procedimento aberto pelo CRM-MG decorre de uma sindicância feita em 2021, logo após o lançamento do aborto legal por telemedicina. “Vieram ao hospital onde eu trabalho e dou aula, me fizeram perguntas, acessaram mais da metade dos prontuários das meninas e mulheres, que utilizaram o serviço por telemedicina”, contou Paro, sobre a sindicância. A defesa da médica questiona a validade do procedimento. Conforme diz o atual Código de Processo Ético Profissional do Conselho Federal de Medicina, uma sindicância é aberta “mediante denúncia escrita ou verbal, na qual conste o relato circunstanciado dos fatos e, quando possível, a qualificação do médico denunciado, com a indicação das provas documentais, além de identificação do denunciante”. No ofício que inaugura a sindicância, ao qual a Agência Pública teve acesso, todavia, não há qualquer identificação sobre o denunciante. Constam apenas duas publicações em veículos de imprensa – Uol e Gazeta do Povo, que noticiaram o serviço por telemedicina e a polêmica em torno do tema. De acordo com o artigo 7º das normas aprovadas pelo próprio Conselho, denúncias anônimas não são aceitas. “A sindicância foi considerada favorável, sem registros de infração ética. Ainda assim, o Conselho optou por aprofundar a investigação da conduta de Helena Paro”, disse Gabriela Rondon, advogada da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, que integra a equipe de defesa da obstetra. De acordo com Paro, o procedimento a acusa de uma série de infrações de artigos do código de ética médica, como ‘corromper os bons costumes’ e ‘favorecer o crime’. “Também de ‘não utilizar os conhecimentos científicos em prol da saúde das pessoas’, o que era exatamente o que eu estava fazendo”, disse a médica. Os registros documentais da sindicância estão sob sigilo, por norma do Conselho Federal de Medicina. O procedimento ético-profissional também é sigiloso. O caso foi encaminhado à Justiça pela própria defesa da médica, na tentativa de suspender a ação. Contudo, no ano passado, a Vara da Justiça Federal de Uberlândia se pronunciou pela continuidade do procedimento, entendendo que não havia ilegalidade na investigação ética por parte do Conselho. Um pedido de recurso foi encaminhado pela defesa da obstetra ao Tribunal Regional Federal (TRF), que intimou o CRM-MG a dar explicações. Tanto o procedimento ético-profissional do CRM quanto sua judicialização continuam em andamento. Defesa da médica questiona validade da ação do Conselho
Desde 2021, a médica também enfrenta retaliações em outras frentes. Em agosto daquele ano, o Defensor Nacional de Direitos Humanos André Ribeiro Porciuncula, e o procurador regional de Direitos do Cidadão do Ministério Público de Minas Gerais Fernando de Almeida assinaram conjuntamente uma recomendação, enviada ao Ministério da Saúde e ao Conselho Federal de Medicina (CFM), pedindo a expedição de normativa aos profissionais vinculados ao CFM, “explicitando a ilegalidade e impossibilidade da realização de abortamento legal por meio da telemedicina”. Eles questionam a administração do Misoprostrol, medicamento usado na indução do aborto, longe do ambiente hospitalar, embora o procedimento seja considerado seguro. “Funcionou muito bem no Reino Unido e adequamos à realidade brasileira, o que era perfeitamente possível”, explicou Paro. A recomendação do defensor público e do procurador do MP também pedia a abertura de “procedimento administrativo para apurar a responsabilidade profissional de médicos, servidores e demais responsáveis pela orientação de aborto legal por telemedicina, além da apuração dos 15 casos que teriam sido realizados, até aquela época, por meio do serviço, com “punição dos responsáveis” por realizarem um procedimento “ilegal”. A interrupção da gravidez é permitida pela legislação brasileira em casos de gravidez decorrente de estupro, quando oferece risco à vida da gestante ou em caso de anencefalia do feto. O procedimento, nesses casos, deve ser oferecido pelo SUS (Sistema Único de Saúde) sem exigência de registros, como boletim de ocorrência. O Núcleo de Atenção Integral às Vítimas de Agressão Sexual de Uberlândia (Nuavidas), coordenado por Helena Paro, oferece auxílio e direcionamento – a partir de consultas convencionais ou telemedicina, sendo este possível apenas a partir de um primeiro encontro presencial em casos de violência sexual. Serviço pioneiro criado por Paro auxilia a realização do aborto legal em caso de violência sexual. A recomendação do defensor e do procurador do MP em Minas Gerais foi rebatida em uma outra recomendação da Defensoria Pública da União, assinada por 41 pessoas de Defensorias Públicas de vários estados do país. Eles pediam que o Ministério da Saúde e o Conselho Federal de Medicina garantissem que os “profissionais atendam casos de interrupção de gravidez nos casos legais por meio do sistema híbrido com telemedicina, previsto no protocolo ‘Atenção a mulheres ou adolescentes em situação de aborto previsto em lei por telessaúde/telemedicina’”. Apesar dessa nova recomendação coletiva, o Ministério da Saúde do governo Bolsonaro preferiu seguir as diretrizes do documento anterior, contrário ao serviço lançado por Paro e publicou, em 7 de julho de 2021, uma Nota Informativa condenando o aborto legal por telessaúde. Entre outros pontos, o texto da Pasta, à época comandada pelo médico Marcelo Queiroga, também questiona as recomendações da Organização Mundial de Saúde. Diz que “as referências à OMS e aos sistemas de saúde de outros países, embora tenham caráter orientativo, não têm o condão de subjugar um País soberano no desenvolvimento de suas Políticas de Saúde”. A nota, contudo, não tem valor de regulamentação. Também em 2021, a Câmara de Vereadores de Uberlândia, município onde Helena Paro leciona e trabalha, propôs uma Moção de Repúdio à médica, ao Instituto de Bioética Anis e a Rede Médica Pelo Direito de Decidir (Global Doctors for Choice Brasil), que também assinam a cartilha com orientações para aborto legal por telemedicina. A proposta foi feita pelo vereador Tharles Santos (PSL), que chegou a apresentar projeto de lei propondo o fim da obrigatoriedade do uso da máscara para pessoas que tinham tomado duas doses ou dose única da vacina, mas faleceu de Covid-19 naquele mesmo ano. A moção de repúdio foi rejeitada porque não conseguiu maioria de votação. Em outra ocasião, o então vereador de Uberlândia e atual deputado estadual Cristiano Caporezzo (PL-MG) utilizou uma sessão legislativa para atacar o trabalho de Helena Paro e o coletivo Feminino de Ação Popular (FAPO), após a publicação de uma carta de apoio da entidade à pesquisa da obstetra. “O Coletivo FAPO é um grupo feminista que fez uma carta de apoio a Helena Paro, uma médica da UFU que fez uma cartilha de aborto por telemedicina. Isso é um completo absurdo que coloca em risco a vida da criança e da própria mulher. Receber um pedido de cassação de um grupo feminista me deixa muito feliz, pois é claro sinal de que estou no caminho certo”, disse o vereador, a época, em entrevista ao portal Diario de Uberlândia. Em nota de solidariedade à médica, a ONG feminista Católicas pelo Direito de Decidir classificou a ação do CRM-MG como “ ‘caça às bruxas’ a quem, diante da omissão do Estado, trabalhou para cuidar daquelas que foram brutalmente atacadas em sua dignidade”. Na nota, o grupo também ressalta que o “procedimento é altamente seguro, inclusive sendo recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) durante a pandemia”. “Logo que as notícias começaram a vincular a cartilha [de abortamento legal por telemedicina] ao meu nome, eu fechei minhas redes sociais, já prevendo possíveis ataques e perseguições. Fiz o possível para me blindar e zelei pela minha segurança”, disse Helena Paro. “Mas talvez essa perseguição, juntamente com outras ameaças veladas, tenham contribuído para a síndrome de burnout que fez com que eu me afastasse entre o meio do ano passado e março deste ano”, continuou. Ela já voltou ao trabalho, e continua com as aulas e com os atendimentos clínicos. O Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais não respondeu os questionamentos da reportagem até a publicação.
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