domingo, 2 de abril de 2023
Tentativa da direita de sequestrar o ‘combate ao PCC’ só fortalece a facção
Quando o senador Sergio Moro (União Brasil) usa a mera citação a um e-mail em um inquérito policial para insinuar uma ligação do PCC com Lula, ele tenta tomar para si o papel de “contrário” à facção em oposição ao PT, ou a Lula, que seriam, por essa lógica torta, “favoráveis” ao PCC. Quando o bolsonarismo promoveu, durante a campanha eleitoral do ano passado, uma onda de fake news contra o PT e Lula a partir de uma frágil declaração (teria ouvido um comentário de outra pessoa, sem qualquer prova material), jamais comprovadas, do operador do mensalão Marcos Valério sobre um suposto elo do PCC com o PT, também tentou sequestrar para si a bandeira do “combate ao PCC”. Da mesma forma, quando Moro reforçou o tema do PCC após um debate televisivo entre Lula e Jair Bolsonaro na reta final da eleição presidencial do ano passado, novamente pretendeu demarcar “nós” — no caso, os contrários à facção criminosa — e “eles”. Nós sabemos o que essa retórica produz de ódio e falsificação histórica. Já são muitos os movimentos da direita para formar a “narrativa” de que o maior partido de esquerda tem vínculos com a maior facção do crime organizado no país, ou vice-versa. Logo depois da campanha eleitoral, uma onda de fake news dizia que Lula havia “agradecido sua eleição” ao criminoso Marcos Camacho, o Marcola, um dos líderes do PCC. Lula na verdade falava com um antigo assessor, o sociólogo Marco Aurélio Santana Ribeiro, que tem o mesmo apelido. As agências de checagem tiveram que novamente desmentir. No começo de outubro, mês decisivo para a campanha presidencial, às vésperas do primeiro turno um texto divulgado pelo site “O Antagonista” dizia que o chefe da facção havia declarado voto em Lula. O tema foi prontamente repercutido por Bolsonaro e outros perfis em redes sociais. Bolsonaro escreveu que “o crime organizado apoia Lula, porque Lula representa os interesses dele”. A coligação que apoiava o petista teve que ir ao STF para pedir a retirada de mais de 300 links na internet sobre o assunto, pois consistia numa verdadeira campanha difamatória a fim de associar Lula ao crime organizado. A coligação petista chamou de “uma ação orquestrada e célere”. Esse movimento dos partidos da direita e da extrema-direita há tempos é muito evidente. Se a esquerda “está com o crime organizado, então o brasileiro honesto e trabalhador está conosco”, ou seja, a direita, conforme exatamente escreveu Bolsonaro na campanha em 2022. “É uma mentira poderosa porque mexe com o medo presente em todas as classes sociais, o da violência, dos assaltos, dos sequestros, dos homicídios. Mas para ficar de pé, a teoria conspiratória precisa contar, acima de tudo, com a amnésia geral do brasileiro, o que, também convenhamos, não é nenhum problema. Era um domingo tranquilo de sol forte e poucas nuvens em São Paulo, aquele 18 de dezembro de 2001. O presidente era Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e o Papa, João Paulo II. O presidente norte-americano, George Bush, filho, não tinha nem um mês no cargo. As torres gêmeas do World Trade Center ainda estavam de pé. Enzo Fernandez, o jogador argentino que ganhou a Copa do Mundo de futebol no ano passado, tinha apenas 31 dias de vida. E Vini Jr., o astro brasileiro no Real Madrid, era um bebê de sete meses. Até o início da tarde, o grande acontecimento a ser coberto naquele domingo pelos jornalistas de plantão, como eu, era a apreensão de uma grande carga de equipamentos eletrônicos no aeroporto de Guarulhos. No plantão, os jornalistas de uma sucursal cobrem de tudo um pouco, de modo que eu seguia de carro do jornal “O Globo” para o aeroporto quando, por telefone celular, a chefia me orientou a esquecer a pauta e ir imediatamente para a penitenciária do Carandiru. As emissoras de rádios já anunciavam a “megarrebelião” que fez mais de 25 mil reféns e parou 29 unidades prisionais ao mesmo tempo. No final do dia, 14 detentos seriam assassinados nos presídios pelos próprios amotinados. O plantão que começou modorrento só acabou na manhã do dia seguinte. Na porta do Carandiru, para onde correram todos os repórteres disponíveis e indisponíveis, a sigla começou a circular de boca em boca, como um rastilho de pólvora, “PCC, o Primeiro Comando da Capital”. Só quem lia as páginas policiais dos jornais tinha uma ideia do que se tratava. Até então o PCC era completamente ignorado no país. Nos anos 1990, quando o “Diário Popular” falou da criação de tal facção, o governo paulista do PSDB desdenhou, chegou a dizer que era ficção. No dia da “megarrebelião”, alguns líderes estavam com telefones celulares nas celas e atendiam normalmente às chamadas da imprensa. Entrevistei um deles, se não me engano, “Césinha”, que seria assassinado em 2006, que falava em nome do PCC. Depois daquele 18 de fevereiro, a história da segurança pública no país nunca mais seria a mesma. Não seria mais possível analisar esse tema sem indagar as movimentações, os planos e a distribuição do PCC no território nacional. O governo do PSDB visivelmente perdera o controle do sistema prisional. Atônitos, nós repórteres vimos surgir ali um monstro, que rapidamente se espalhou por dezenas e dezenas de unidades prisionais no país todo. Uma expansão que muitas vezes levou à criação de facções rivais, que hoje travam enormes disputas e acertos sangrentos cujos detalhes, nomes e datas já nem conseguimos acompanhar. Dezesseis anos depois, em janeiro de 2017, lembrei daquele dia quando desembarquei em Manaus, no Amazonas, para cobrir a mais violenta rebelião da história do Estado, com 67 mortos, muitos dos quais decapitados. Depois especialistas explicaram que a facção que desencadeou o massacre, a FDN (Família Do Norte), fora criada em 2006 para se opor ao crescimento do PCC no Estado. Dias depois eu já estava em Boa Vista, Roraima, onde 33 detentos foram executados. Segundo apurou-se depois, foi uma retaliação do PCC à chacina de Manaus. São 22 anos de um assim chamado “combate ao PCC”. Portanto ele jamais foi inventado pela direita, pela extrema-direita, pelo bolsonarismo e muito menos por Moro. Diferentes autoridades de todos os Poderes, diferentes governos de diferentes níveis e ideologias diversas já enfrentaram e passaram apuros, tiveram algumas vitórias e enormes derrotas. Ameaças contra todos os lados, da direita à esquerda. Em 2011, a Polícia Federal anunciou ter desarticulado um plano para sequestrar um filho do ex-presidente Lula, Luis Cláudio. Moro hoje acusa o PT e Lula de serem coniventes com o PCC, citando suposta recusa na transferência de líderes da facção para presídios federais durante os governos do PT (2003-2016). Mas o ex-juiz omite que Lula e o PT foram na verdade os criadores dos presídios federais. Até 2006, quando o primeiro foi inaugurado na gestão do então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, inexistia esse tipo de penitenciária. E qual era uma das motivações do PT? Surpresa: exatamente isolar os líderes do crime organizado, ou seja, do PCC. Assim que foi criada a primeira unidade, em Catanduvas (PR), o Ministério da Justiça de Lula transferiu diversos detentos do PCC para lá. Transferências de líderes de facções são acertos intrincados entre Ministério Público, Judiciário e Executivo, portanto os governos do PT eram apenas um dos lados da questão. Os governos estaduais tinham que aprovar. E a permanência desses detentos deveria ser temporária, já que as regras nos presídios federais são mais rígidas. Por isso, várias vezes o Judiciário determinou retornos dos presos aos presídios de origem. Por que a direita não conta a história direito? Porque não lhe interessa. Ao longo dos mandatos de Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016), inúmeras operações foram desencadeadas pela Polícia Federal contra integrantes do PCC. Na “Operação Facção Toupeira”, em 2006, a PF prendeu 29 assaltantes de banco vinculados ao PCC. Em 2007, a “Operação Cachoeira” atacou o vínculo do PCC com o narcotráfico na região de Campinas (SP). No segundo mandato de Lula, em 2009, a PF indiciou 50 suspeitos de ligação com o PCC em Mato Grosso. A lista das vítimas do chamado “combate ao PCC” é extensa. Um juiz de Direito, Antônio José Machado Dias, foi assassinado em Presidente Prudente (SP) – esse sim pode ser chamado de uma referência para o Judiciário. Agentes penitenciários, como Alex Belarmino, e mesmo uma psicóloga do Departamento do Sistema Penitenciário, Melissa Araújo, foram emboscados e covardemente eliminados sem chance de reação. Foram crimes absurdos, desumanos. Do outro lado, ações brutais do Estado brasileiro tiveram consequências ainda mais sangrentas e alimentaram um círculo vicioso de crime e vingança. De 12 a 20 de maio de 2006, o PCC desencadeou uma onda de ataques que matou pelo menos 43 agentes públicos, muitos surpreendidos em seus horários de folga. A resposta dos agentes do governo – o Estado era então governado por Cláudio Lembo (PFL), na época vice do atual vice de Lula, Geraldo Alckmin (PSDB) — foi uma carnificina sem precedentes. As organizações de direitos humanos contabilizaram 564 mortos e 110 feridos, no que ficou conhecido como “Os crimes de maio”. No relatório “São Paulo Sob Achaque”, a ONG Justiça Global apontou que “a corrupção praticada por agentes públicos” foi “uma das principais motivações do PCC para realizar os ataques”. Pouca gente lembra, mas um dos argumentos dos presos para a criação do PCC, em 1993, numa cadeia de Taubaté (SP), foi justamente o massacre no Carandiru ocorrido no ano anterior, quando 111 detentos foram assassinados por policiais militares na capital paulista. Em 1993, os detentos diziam que a nova facção impediria outras chacinas praticadas pela polícia. Para cada ação, uma reação, numa lógica primitiva do olho por olho, dente por dente. Logo o PCC cometeria suas próprias chacinas, como a de maio de 2006. A violência do Estado não suplantou a ameaça concreta que o PCC representa. A facção obviamente não acabou depois dos crimes de maio de 2006. O aprofundamento da divisão política amplia os problemas. Lula também não ajudou nesse sentido quando sugeriu, em uma entrevista na semana passada, que o plano do PCC contra Moro seria uma “armação”. Sua fala imprudente gerou ruído desnecessário entre figuras de campos políticos opostos. Lula deixou de dizer que a PF do seu próprio governo foi quem desvendou o crime e impediu a violência contra o senador. Poderia ter explorado esse fato, calando seu oponente. Ironicamente, foi um governo de esquerda que salvou um dos ídolos da direita. Como se diz hoje em dia, dessa vez “o roteirista do Brasil forçou a mão”. A confusão entre autoridades e a dificuldade de um discurso unificado contra o crime organizado só fortalecem as facções na medida em que os diversos atores responsáveis pela segurança pública batem cabeça ou alimentam desconfianças entre si. Tudo o que o crime organizado mais precisa é de um Estado dividido, bagunçado e perdido — aliás uma especialidade de Jair Bolsonaro, vide o combate à Covid-19. Na confusão, é mais fácil reinar. Embora a motivação até agora não esteja totalmente clara, há indícios de que integrantes do PCC, no mínimo, monitoravam Moro. Pelos documentos que vieram a público, não fica comprovado se iriam realizar um sequestro ou um assassinato, mas com certeza algo de muito ruim estava em andamento. A PF fez certo em agir. O caso revela também um grande desvario da direita. Ela está tão centrada em seus próprios fantasmas e falsas teorias a fim de demonizar a esquerda, como “o comunismo vai tomar o país” ou a “CPI do MST”, que não encara, ou simplesmente não quer, ou não sabe encarar, os reais problemas do país. A cegueira ideológica desvia o Brasil dos seus desafios mais urgentes e sérios.
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